Eis um personagem sobre o qual há que se escrever duas biografias. Há a história do controvertido imperador que durante 44 anos comandou a Etiópia com mão de ferro. E uma segunda versão do mesmo personagem, ainda mais extravagante: para todos os seguidores da música reggae e fumadores "d'aquilo que faz rir" deste mundo, Hailé Selassié é ninguém menos que... Deus!
O primeiro Selassié, o que se tornaria imperador, nasceu em 1892 no nordeste da Etiópia. Os pais chamaram-lhe Tafari Makonnen (daí Ras Tafari, que é "príncipe Tafari" em etíope). Como o pai era primo do rei Menelik II, aos 12 anos já era governador de província. Educado por missionários franceses, mostrou logo que era inteligente e despachado, e muito por isso se tornou no preferido do rei, galgando posições - entre elas, a de genro. Em 1916, casou com a cunhada, a imperatriz Zauditu, e nomeou-se regente - 14 anos depois viraria imperador. A bordo de um novo nome, Hailé Selassié I revelou-se um centralizador, que escolhia pessoalmente todos os funcionários, dos mais graúdos aos criados. Às vezes parecia bem-intencionado, tendo lutado pela emancipação de países africanos. Mas era paradoxal, pois discursava contra os imperialistas e mantinha relações obscuras com alguns deles, especialmente a Inglaterra.
Entre os feitos de Selassié está a resistência heróica, ainda que mal-sucedida, às tropas de Mussolini, quando liderou os soldados no campo de batalha. Seu plano de "modernização" não foi capaz de tirar a Etiópia da miséria. Entre uma e outra viagem pelo mundo, ele esparramava-se no trono, entre os leões de estimação, exigindo que os vassalos lhe beijassem a mão. Enquanto isso, o país sucumbia à corrupção e à fome. Aos 84 anos, deposto, debilitado e feito prisioneiro no próprio lar, morreu misteriosamente (dizem que asfixiado por uma almofada). Seus restos foram encontrados sob um vaso sanitário há poucos anos.
Agora vamos ao "outro" Selassié. A sua origem também remonta ao final do século 19, só que aí como inspiração dos negros de uma Jamaica pobre e com a escravidão ainda mal cicatrizada. Ávidos leitores da Bíblia, eles reconheceram-se na história de perseguição aos judeus, na busca da terra prometida (no caso deles, a África) e passaram a esperar por um messias. Em 1927, o jovem activista Marcus Mosiah Garvey afirmou que um rei negro seria coroado na África, e que a partir desse dia a redenção estaria próxima. Aí Selassié tornou-se imperador, adornando o seu novo nome com títulos não de todo improváveis numa monarquia cristã como a etíope - Reis dos Reis, Leão das Tribos de Judá... Já era tarde: os jamaicanos tomaram-no por Deus. Ou Jah.
Em 1966, as duas biografias cruzaram-se. O imperador foi em visita oficial à Jamaica. O governo decretou feriado. Milhares de pessoas, muitas com longas tranças, vindas de todas as partes do país, tomaram o aeroporto e a estrada que levava a ele. Cânticos tribais, grandes tambores e enormes ganjas(1) completavam a cena, lembrada com muito exagero pelos velhos rastas jamaicanos. Selassié, que nunca acreditou nessa história de ser Deus, chegou até a porta do avião, olhou para a balbúrdia e recusou-se a desembarcar. Ele só concordou em pisar a Jamaica depois de um velho sábio chamado Mortimer Planno(2) entrar no avião a convence-lo de que estava tudo bem. E, se você acha que estou a inventar isto tudo, por favor, ouça os discos de um discípulo de Planno - um tal Bob Marley. Foi ele quem espalhou essa história por aí.
(1) Ganja - palavra de origem hindi, usada pela nação Rastafari, principalmente na Jamaica, para a versão feminina da Cannabis Sativa.
(2) Mortimer Planno - grande mentor espiritual de Bob Marley, tendo inclusive colaborado na composição de algumas letras, como "Chances Are".
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